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sexta-feira, 22 de março de 2013

Os meninos das Lojas Americanas


Eu estava sem fazer nada e decidi que ia fazer a visita que tenho adiado desde o final da semana passada a uma escola de piano na Carioca. No meio do caminho, mudei de ideia. Tava com fome e decidi ir a Saens Peña. Junto à decisão, um medo estranho, angustia, sei lá. Mas fui mesmo assim. Chegando lá, desisti de ir ao shopping e quis ir numa lanchonete que fui uma vez com a minha mãe numa daquelas galerias. No caminho, passei em frente às Lojas Americanas. Na mesma hora, uma das seguranças da loja trazia puxando e empurrando duas crianças. Olhei aquilo, fiquei chocada, andei mais alguns metros e parei. Olhei pra trás e lá estavam elas... Eu não entendi direito a situação, de repende mais seguranças chegaram e mais pessoas parando pra ver aquilo... Não entendi se tinha sido uma tentativa de assalto... Um deles colocou a mão na calça e eu confesso que fiquei com medo que ele sacasse uma arma (é, eles começam cada vez mais cedo).
Resolvi voltar... Perguntei o que tava acontecendo e um senhor respondeu "são esses pivetes aí arrumando confusão". Chamei os dois, perguntei se eles estavam com fome e um deles me respondeu agressivo "É aniversário da minha mãe! Eu vim aqui comprar um presente pra ela!". Perguntei se eles queriam que eu comprasse e eles disseram que sim, relativamente empolgados. Nessa hora, chegaram dois guardar municipais e chamaram os meninos de volta. O mais velho logo começou "EU TO COM A MOÇA! ELA VAI PAGAR PRA MIM". O guarda pediu calma (ele não me pareceu o típico guarda corrompido do Rio, agia de boa fé, ao meu ver) e perguntou onde estava a mãe dele. Nessa hora o menino, novamente agressivo, respondeu "MINHA MÃE É VICIADA! Tá no sinal vendendo bala pra conseguir dinheiro, hoje é aniversário dela". Senti meu peito rasgar (e mal sabia que era só o começo). Falei pro guarda que me responsabilizava por eles e entramos na loja. Ele escolheu um ovo de páscoa grande, disse que ia dar pra mãe, e eu disse que tudo bem... Eu não sei quando o outro entrou, mas surgiu um terceiro menino perto de mim, primo deles. Era mais sereno, pediu humildemente um chinelo e escolhemos um pra ele e pro outro irmão. Deixei o Felipe (o irmão mais velho, tem 12 anos) na fila enquanto pegávamos o calçado e no caminho eu comentei algo do tipo "conversa com o seu primo, eu sei que é difícil, mas ele acaba sendo agressivo e isso piora a resposta dos outros a ele", ele respondeu "É... Ele tem cara de usuário de drogas, né¿" E meu peito foi rasgado de novo, porque eu só conseguia  pensar que uma criança com a idade dele não formularia isso sozinha! Ele deve ter ouvido de alguém na rua, de algum policial, ou em casa mesmo... Respondi que não, que eu me referia só à postura dele mesmo, que comprar briga só iria piorar as coisas...
 Enquanto escolhíamos o calçado, Felipe (que também não era muito de evitar confusão) saiu da fila e eu pude ouvir de longe os gritos "EU NÃO TO ROUBANDO! ISSO AQUI A MOÇA VAI PAGAR PRA MIM"... Fui atrás e uma das seguranças tinha tirado o ovo da mão dele e o puxava pelo braço. Expliquei que era verdade, que ele tava comigo e ela me disse que eu tava ajudando um ladrãozinho, que eles sempre estavam lá roubando desodorante e comida da loja. Eu fiquei perdida, enjoada. Não cuido nem das minhas coisas direito e estava sozinha com 3 crianças estigmatizadas por uma sociedade hipócrita. Chamei os meninos pro caixa, uma fila enooorme e eu só queria que eles saíssem logo dali antes que alguém os humilhasse mais uma vez.  Quantos olhares, fiquei incomodada demais. Uns me olhavam como se eu fosse uma tola que estava alimentando um marginal (sem se darem conta de que o que os alimenta é justamente o oposto! A violência, o ódio, o desprezo. Carinho e atenção é o que sempre os faltou!), outros me olhavam como se eu fosse uma Madre Tereza (o que também me incomodou, porque mostra o quanto a caridade é escassa hoje em dia, ao ponto de surpreender as pessoas). Uma moça na fila puxou papo, e fez as perguntas que a gente não faz, do tipo "e vocês estão na escola¿" - MOÇA, SE ELE NÃO ESTIVER NA ESCOLA ELE NÃO VAI FALAR! Ele vai mentir e você vai ter jogado mais uma vez na cara dele que ele está à margem, que não faz parte do mesmo mundo que você. Acredite, com 10 anos ele preferiria estar lá do que vendendo bala na rua. Se não for fazer algo a respeito, não comente! Quem deveria matricula-lo não estava lá.
Finalmente chegou nossa vez. Passando as mercadorias, eles perguntaram à moça do caixa o preço do ovo de páscoa. Ela respondeu "50 reais!", e a reação foi "Nooossa... 50 reais! Ninguém nunca fez isso por mim! Obrigado, moça! Obrigado mesmo...". Nessa hora, eu só conseguia pensar "Putz! Gastei  43 reais hoje no salão fazendo as unhas e a sobrancelha..." e o peso da vergonha dos meus supérfluos aumentava a cada segundo, beirando o insustentável. Paguei. Eles pediram a nota fiscal (provavelmente pra provar pra algum guarda, ou em casa, que não tinham roubado). E fomos embora. Voltei pra casa, 100 reais mais pobre, mas dei a um miserável (que provavelmente só recebia dos outros o pão velho de ontem, por acharem que pobre tem que se contentar com as suas sobras) a chance de comer como alguém do mundo que ele inveja, mundo do qual ele gostaria de fazer parte. Um mundo em que eles seriam chamados de Felipe, José e Matheus, e não de "pivetes" ou "marginais". Dei atenção, meu tempo e energia a alguém que tem fome de afeto.
Confesso que não estou com paz no meu coração. Não sei se eles vão ser chutados por alguém hoje, não sei mais quantas vezes eles irão ouvir que são pivetes, ladrões, marginais e afins até que de fato assumam o personagem que todos projetam neles. Só peço a Deus que abençoe a todos que são tratados como se não fossem gente. Por favor, não pensem que sou ingenua! Com 6 meses no Rio, colocaram uma faca no meu pescoço e levaram meu celular, meu dinheiro e muitas das minhas ilusões. Eu sei que eles podem acabar se vendendo pra esse mundo. Aliás, a chance é grande.
Só peço que parem de olhar um pouco com os seus olhos e passem a olhar com os deles: Se você passasse fome, se fosse chutado, xingado ou simplesmente invisível, como se fizesse parte dos asfalto, quais seriam as suas escolhas¿ A gente exige que eles se levantem, mas é difícil achar alguém que estenda minimamente a mão!
Que nossos políticos abram os olhos, que eles enxerguem que são eles igualmente assassinos - como aqueles do poder paralelo - quando desviam verbas, que deveriam ser destinadas a melhorar a qualidade de vida da nossa gente. Matam pacientes nos leitos hospitalares por falta de equipamentos básicos; matam o futuro e os sonhos dos nossos jovens por falta de ensino, de ensino de qualidade, por falta de oportunidades.
Meu Deus, às vezes é tão difícil ter fé na humanidade. Finalizo pedindo que não abram mão de ajudar àqueles que cruzam o seu caminho. Se cada um fizesse a sua parte, o mundo seria um lugar com muito menos sofrimento. O seu supérfluo pode ser a necessidade básica de alguém!


A Felipe, José e Matheus.